Contexto
Nunca imaginamos que seríamos professoras de Educação Infantil trabalhando horas em frente ao computador e sentadas em uma cadeira dentro de casa. Nossos corpos precisaram se adaptar para uma tarefa nunca antes aventada: fazer escola durante uma pandemia para crianças pequenas no modelo remoto. As perdas foram e ainda são inevitáveis. Em hipótese nenhuma queremos negá-las ou defender o modelo remoto como substituto do presencial. Porém, por ora, se faz necessário criar sentidos para o que estamos vivendo e decidimos nos ater às reflexões a respeito da aprendizagem das crianças na interação mediada pelos dispositivos tecnológicos: quais nossas intencionalidades pedagógicas como professores e o que identificamos como aprendizagens nesse modelo no qual temos trabalhado há pelo menos um ano.
Objetivos
– construir novos sentidos para a prática pedagógica;
– desenvolver a linguagem oral das crianças;
– promover a interação mediada pelos dispositivos tecnológicos entre crianças;
– estimular a construção de vínculos e uma relação empática;
– trabalhar a independência e automomia das crianças em relação aos dispositivos tecnológicos.
Recursos educativos
Plataforma de interação síncrona: Zoom.
Plataforma de interação assíncrona: Google Sala de Aula.
NOTA DA EDIÇÃO: em vez de utilizar as plataformas comerciais indicadas aqui, sugerimos com crianças plataformas abertas de videoconferências como o Jitsi e, para interação assíncrona, o Moodle.
Metodologia
– Brincadeiras cantadas em que as crianças são convidadas a abrir e fechar suas câmeras quando chamadas;
– Renomear as janelas das crianças com escrita de seus nomes em caixa alta;
– Compartilhar tela para escrever a rotina e consultar lista de nome dos colegas de classe.
Assim como em todos os processos de aprendizagem, as crianças se apropriam das práticas sociais conforme as vivenciam e isso demanda tempo. Nesse sentido, não acreditamos que apenas uma aula sobre abrir e fechar o microfone, o que equivaleria a velha aula de informática, garantiria a apropriação no uso da ferramenta. No entanto, se faz necessário falar sobre os dispositivos tecnológicos, para o que eles servem e como funcionam ao longo do processo – principalmente no início, quando as crianças ainda não estão apropriadas da ferramenta. E, assim, gradualmente, elas vão aprendendo as facilidades da plataforma para o seu conforto e de todos, contando com o professor – adulto mais experiente – para auxiliá-las nesse processo, que estimula as crianças a fazerem um uso cada vez mais independente e as convida a refletir sobre esse uso – as motivações para se abrir/fechar a câmera/microfone. Mais exemplos sobre essa aprendizagem aparecerá na seção vídeo.
Ao tentar desconstruir a relação corporal pouco ativa e quase sempre sentada da relação com os aparelhos eletrônicos, sabendo da importância do movimento sobretudo na Educação Infantil, planejamos alguns encontros virtuais em que as crianças podem levantar e explorar o corpo de outras maneiras, seja desfilando, incorporando uma personagem monstruosa e criando poses para os colegas imitarem. Em uma dessas propostas que nomeamos como “De pernas para o ar”, algumas crianças contaram com ajuda de adultos que as filmavam enquanto elas tentavam se equilibrar em um pé só em frente à câmera, outras precisaram mudar o local e ângulo do aparelho para mostrarem o corpo todo aos colegas. Quando uma criança arruma a tela do computador para que seu rosto ou corpo apareça e nos pergunta: “vocês estão me vendo?”, ela está considerando seu interlocutor.
Da mesma maneira que observamos e legitimamos na sala de aula os diferentes tipos de participação e assim como antecipamos no tópico Microfone, a câmera amplia as formas de estar junto. Uma criança que está se recusando a participar do encontro virtual, pode por exemplo, permanecer com a câmera fechada ou com o microfone desligado e comunicar-se apenas através de gestos com a cabeça ou com a mão. A ideia é que as crianças, aos poucos, lapidem suas maneiras de participação. Por isso, nós fazemos registros após os encontros para poder acompanhar e ajudar cada um nesse processo.
Tendo ainda arraigadas à necessidade do tão conhecido “téte-a-téte” para promover a interação entre as crianças, o primeiro exercício de reflexão foi pensar a pertinência dessas propostas sem a nossa intervenção direta. A primeira e talvez mais simples justificativa é não aumentar ainda mais o tempo de permanência frente à uma tela – afinal, isso seria uma tentativa de mimetizar todas as horas presenciais.
Conforme fomos nos apropriando e refletindo sobre como fazer escola remotamente, o assíncrono tornou-se peça fundamental nesse processo. Nesse sentido, as propostas assíncronas compõe a sistematização de materiais escolhidos para se atingir um objetivo de aprendizagem, fazendo-se então tão importantes quanto os encontros virtuais.
Tendo em vista que cada criança tem seu próprio processo de aprendizagem e apreensão de mundo e a nossa tarefa é garantir que cada um, na sua singularidade, faça parte do coletivo, o assíncrono é capaz de acolher as crianças e famílias que não conseguem participar dos encontros virtuais ou ainda mais, aqueles que, pelas mais diversas e justificadas razões, se recusam a estar virtualmente nesses momentos. Assim, a participação que não é realizada em tempo real, se dá como mais uma possibilidade de interação entre as crianças e também entre elas e o conhecimento que circula.
Ao longo dos meses, fomos tentando nos aproximar das dificuldades de cada família para participarem das propostas. A disponibilidade e a escuta de cada um foi essencial para que pudéssemos pensar em intervenções pontuais e eficazes para garantir a interação entre eles. O assíncrono se coloca como possibilidade potente nesse processo, afinal, além da flexibilidade de horário, a criança – com o apoio do responsável – pode comunicar-se com os colegas e com os temas que tratamos sem a exposição – às vezes dolorida que os encontros virtuais podem provocar.
Construímos então pequenas conversas no mural virtual da sala, convocando e provocando as crianças para que comentassem tanto as nossas postagens, como a dos colegas. Essa reflexão foi compartilhada com as famílias que deveriam ser o apoio na escrita das crianças, que fossem suas mãos digitando o que as crianças queriam compartilhar com os amigos da sala.
Além disso, algumas das propostas assíncronas estavam relacionadas aos temas dos encontros virtuais, o que ajudava-nos a estabelecer um caminho, um “vai-e-vem”, que do lado assíncrono motivava as crianças a irem para os encontros e, durante os encontros, convocávamos as crianças para visitarem as propostas assíncronas. Além disso, na nossa interação incentivávamos as crianças a elaborarem seus comentários com mais qualidade por meio de perguntas que as provocassem a pensarem mais sobre os assuntos. Muitos desses comentários são relativos à apreciação, por exemplo, de uma história. Como na sala de aula presencial, convidamos as crianças a se conscientizarem a respeito de suas preferências, como quando elas comentam “Gostei”, pensamos em boas perguntas para que elas explicitem os motivos que a agradaram ou desagradaram.
Assim, é possível criar um ambiente de interação e circulação de saber que, embora virtual, é significativo, garantindo a intencionalidade das professoras e a função real da comunicação.
As experiências síncronas e assíncronas são, como explicamos no tópico oralidade, principalmente, pautadas pelas conversas entre as crianças e professores. E, também por meio delas, aos poucos, as crianças foram se constituindo como parte de um grupo – considerando que ao iniciarmos o isolamento social esse grupo estava começando a se formar na escola. Um grupo se constituiu pelas experiências vivenciadas e compartilhadas, ou seja, pela capacidade de olhar para o outro. O desafio então, nesse momento, foi intervir de modo que as crianças exercitassem esse olhar. Nesse sentido, uma das maneiras de atuação foi elaborar boas perguntas e mediar a interação entre eles visando uma efetiva comunicação.
E, assim como presencialmente, num início de ano, é preciso deslocar o desejo das crianças de apenas falar ou mostrar o que lhes pertence e faz parte de sua história, foi preciso também à distância, trabalhar para construir esse olhar coletivo e uma atitude de quem faz parte de um todo.
Pensar o encontro virtual como um encontro real, tal qual aqueles que realizamos na escola todos os dias, é abrir nossos olhos para inserir nessa nova rotina ações e intencionalidade. As entradas e saídas são momentos cruciais para exercitar o cuidado como aprendizagem.
Ao recebermos as crianças, não podemos perder de vista que em cada quadradinho projetado na tela, há uma história singular para ser vista e contada. Se, presencialmente, a recepção das crianças era pensada, virtualmente também é preciso recebê-los da mesma maneira. Cumprimentos e aquele pequeno bate-papo inicial, o reconhecimento de cada um que está lá é aprendizagem de uma prática social. É criar a cultura de primeiro olhar uns para os outros, para depois compartilharmos o que iremos fazer no dia.
A despedida caminha pela mesma lógica de pensamento, enquanto a facilidade e a urgência em sair ou remover todos rapidamente da sala – justificada pelo tempo que nós professores temos visto ficar cada vez mais fugaz -, não pode se sobrepor à intencionalidade e comprometimento com o cuidar. Despedir-se é considerar o outro, não só como interlocutor, mas como alguém cuja importância você considera.
Nesse sentido, à medida que pensamos sobre a intensificação da interação mediada pelos dispositivos tecnológicos e a possibilidade de humanização dessa comunicação, como um exercício de cidadania digital e educação para as mídias, estamos abrindo novas perspectivas de reflexões sobre o cuidar no contexto histórico que vivemos.
Assim, embora o distanciamento nos provoque uma sensação de impossibilidade de nos dedicarmos nesse cuidar, o processo investigativo a respeito das possibilidades de interação no modelo remoto é capaz de abrir – talvez não grandes portas e janelas – mas frestas essenciais para darmos continuidade à uma educação empática.
Número de aulas
Por volta de 20 encontros já é possível notar resultados. No entanto, quanto maior a quantidade e frequência da experiência, mais mudanças serão notadas.
Resultados
– Apropriação dos recursos das ferramentas de tecnologia;
– Desenvolvimento da linguagem oral, comunicação e interação;
– Formação de grupo e relações interpessoais.
No modelo remoto, a interação, um dos dois eixos estruturantes da Educação Infantil, parecia inatingível. Como seria a relação entre as crianças, entre crianças e adultos e entre as crianças e objetos de conhecimento? Como escutar as crianças nas suas diferentes formas de expressão através da tela de um aparelho eletrônico?
Todos sabem da importância da roda de conversa no cotidiano do nosso trabalho. Não é raro a Educação Infantil ser representada em uma imagem em que todos estão sentados no chão, com as pernas cruzadas, naquele círculo onde um enxerga o outro. É uma imagem que diz muito sobre esse segmento da escolaridade e se distancia daquela ideia tradicional de ensino em carteiras alinhadas diante de uma lousa. Além de ser um jeito de estar com o outro, é uma prática social instituída para organizar a rotina, compartilhar descobertas, confrontar ideias, entre muitos outros desdobramentos possíveis. Ao mesmo tempo, do ponto de vista dos educadores, outras intencionalidades estão em jogo, uma delas diz respeito à comunicação, que é um dos aspectos da interação. Como convidar as crianças a experienciarem momentos de conversa coletivas e, processualmente, aprenderem a gerir sua fala e sua escuta, expressar-se com clareza, considerar o interlocutor e o tempo do coletivo?
Essas perguntas nos acompanham nos momentos de planejamento e avaliação, enquanto lidamos com os elementos que constituem o meio digital, que por ora é nosso lugar possível de encontro: o microfone, as várias telas individuais e as oscilações inevitáveis e recorrentes do sinal da internet na quarentena que influenciam diretamente na dinâmica da interação.
Levando em consideração que a videoconferência favorece o desenvolvimento da oralidade das crianças, explorar as outras possibilidades de linguagem foi mais um dos desafios impostos pela pandemia. Assim, foi preciso pensar em explorar as outras linguagens também nos encontros síncronos: brincadeiras corporais, desenhos e propostas que ampliassem as possibilidades de expressão das crianças para além da oralidade. Nesse sentido, as propostas assíncronas também cumprem uma função importante, seja um jogo, uma brincadeira, um convite para um desenho ou uma música sugeridas pelos professores em vídeos e postagens.
Com o passar dos meses e nossas intervenções, observamos as crianças, hoje em dia, estabelecendo diálogos, demonstrando interesse pelo que os amigos falam e construindo uma narrativa coletiva, ou seja, constituindo-se como um grupo de pessoas que compartilham memórias e um pedaços de suas histórias.
Por que recomenda?
O modelo remoto, que parecia apenas um respiro para podermos voltar rapidamente à conhecida sala de aula, atravessou os meses e tornou-se rotina. Assim, os recursos digitais se transformaram em um desafio pedagógico a ser superado a cada novo anúncio de adiamento do retorno presencial. Então, partindo do pressuposto de que a tecnologia não é boa ou má em si, mas sua adjetivação depende de seu uso, juntos vamos nos apropriando cada vez mais dela.
As perdas foram e ainda são inevitáveis. Em hipótese nenhuma queremos negá-las ou defender o modelo remoto como substituto do presencial. Também não acreditamos que o que estamos fazendo é homeshooling e somos totalmente contrárias a essa ideia, principalmente por acreditarmos na importância da interação entre pares no processo de aprendizagem, como ficará explícito ao longo deste texto. Porém, por ora, se faz necessário criar sentidos para o que estamos vivendo e decidimos nos ater às reflexões a respeito da aprendizagem das crianças na interação mediada pelos dispositivos tecnológicos: quais nossas intencionalidades pedagógicas e o que identificamos como aprendizagens nesse modelo.
Além disso, já que não queremos expor as crianças a tantas horas de tela, foi preciso garantir que a “a aula online” não se restringisse apenas ao uso dos aparelhos eletrônicos para a realização das propostas. Pensamos em como mexer os corpos, colocar lápis, papel e pincel na mão das crianças e criar possibilidades em que elas as realizassem em outros ambientes distantes do virtual. Assim, as propostas síncronas, ou os conhecidos encontros virtuais, são permeadas por aquilo que é assíncrono, tendo em vista não só a interação e a comunicação entre as crianças através de troca de mensagens em um mural virtual, como o compartilhamento e acesso ao pensamento das outras crianças e outros sujeitos da nossa cultura.
Referências
– http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volume3.pdf ;
– texto “O ‘oral’ se ensina!”, de Bernard Schneuwly; Jean-François de Pietro; Joaquim Dolz; Janine Dufour; Serge Érard; Sylvie Haller; Massia Kaneman; Christiane Moro e Gabriela Zahnd – Universidade de Genebra. Tradução livre e disponível na apostila curso GRUPO DE FORMAÇÃO CONTINUADA SOBRE O ESTUDO DA LÍNGUA – 2010 da Escola da Vila;
– Ações organizadas no documento “Conversar em el jardín”, disponível na página 131 em https://www.buenosaires.gob.ar/sites/gcaba/files/ni_dc_2-y-3-anos_0.pdf ;
– BNCC
– https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/08/um-a-cada-cinco-estudantes-nao-teve-atividade-escolar-em-julho-diz-ibge.shtml